Reclus e a questão agrária no Brasil


Miriam Hermi Zaar

Élisée esteve no Brasil em 1893, quando também visitou o Uruguai, a Argentina e o Chile [1]. No seu texto “O Brasil nos fins do século XIX” (1985), analisa as características de um país agrário, governado por uma oligarquia rural cuja preocupação essencial era manter o seu status quo. Este contexto o induz a apreender as relações sociais e econômicas que permeiam o mundo rural brasileiro do final do século XIX.

Ao estudar como a perpetuação das tradições do antigo Brasil monárquico, representada inicialmente pelas capitanias hereditárias e pelas sesmarias, reproduziu um modelo caracterizado por uma concentração de terras sem referência, no qual “um pequeno número de proprietários possui enormes terrenos, cujos limites nem conhecem” (RECLUS, 1985, p. 181), se transformou em um dos precursores da análise da estrutura fundiária brasileira do final do século XIX. 

No seu texto, Reclus consegue estabelecer um estreito vínculo entre a produção agrícola e a questão agrária, chamando a atenção para as grandes extensões improdutivas, para a atividade quase nômade do pequeno produtor, mas igualmente para o cultivo do principal produto comercial, o café. 

A sua análise das principais áreas produtoras de café, os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santos, Minas Gerais e norte do Paraná, reporta às técnicas utilizadas para o seu cultivo, sem deixar de associar este contexto ao fim da escravidão e à imigração de milhares de europeus. Élisée concebe o espaço, o tempo, a sociedade e o indivíduo, como uma unidade, por isto incorpora ao mesmo movimento, tanto a produção cafeeira e as altas produtividades alcançadas, como as precárias condições de subsistência de centenas de famílias de trabalhadores agrícolas cujas casinhas, segundo a sua perspectiva, apresentam um aspecto mesquinho que lhe recordava a escravidão: casebres sem jardins, pouco asseados que se alinhavam em uma ou duas filas facilitando a fiscalização do feitor (RECLUS, 1985, p. 176). 

Do mesmo modo que em outras ocasiões, quando tratou do poder das grandes propriedades em detrimento dos pequenos produtores, Reclus ressalta como o aumento das safras brasileiras de café, dos anos anteriores ao seu estudo, havia ocorrido em benefícios dos grandes proprietários, cabendo à pequena propriedade uma pequeníssima parte desta produção. As suas análises são enriquecidas com dados que comprovam estas afirmações: no estado de São Paulo, caracterizado pelo predomínio de solos de alta fertilidade, as propriedades agrícolas que abrangiam entre 10.000 e 20.000 hectares de superfície chegavam a possuir seis milhões de pés de café cada uma, e uma produção de até seis mil toneladas de café/ano, que em grande parte era exportada através de ferrovias particulares. Uma supremacia atestada também pelo grande número de empregados que trabalhavam nas propriedades que em alguns casos chegava a 4.200, quase todos de origem italiana, transformados em mão de obra barata, como resultado de acordos firmados entre os governos brasileiro e italiano (RECLUS, 1985, p. 174-5). 

Um processo cuja origem está vinculada à expropriação de pequenas propriedades agrícolas e a expulsão de camponeses em toda Europa. O seu estudo sobre a Ilha da Sardenha, lhe possibilitou entender como o fim do feudalismo e dos dízimos obrigatórios, substituídos por pesadíssimos impostos, obrigou grande parte dos pequenos agricultores a entregar a sua propriedade ao Estado em troca da dívida contraída. Um contexto que revela as múltiplas formas e contradições que regem as políticas públicas, já que se, por um lado, induziram ao abandono das terras e a uma emigração de mais de duzentos mil italianos anualmente17, por outro, promoveram o aumento das superfícies improdutivas e a expansão das grandes propriedades, que se aproveitaram desta circunstância.

Ao se referir a uma das queixas habituais dos grandes produtores de café brasileiros, a falta de mão de obra, Reclus responde: “O trabalho far-se-ia quiçá melhor, se estas regiões fecundas, que um só possui, fossem repartidas entre os matutos ou pequenos lavradores” (RECLUS, 1985, p. 181). 


Nota

[1] Retirado de ZAAR,  Miriam Hermi. A questão agrária na obra geográfica de Élisée Reclus. Geográfico - Goiânia-GO, v. 9, n. 3, p. 43-62, dez/2015. 

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