Formação política do agronegócio

 Caio Ribeiro Neto [1]


Esta tese desenvolveu-se apreendendo o agronegócio como fenômeno político. Seus dois principais objetivos, nesse sentido, foram a historicização dos percursos públicos da noção de agribusiness/agronegócio e a análise da constituição e evolução de um bloco intersetorial que nela se fundamenta, a concertação política do agronegócio.

Partiu-se de afirmação sobre a preponderância, na esfera pública nacional, de indistinção entre dimensões conceituais, econômicas e políticas do agronegócio. Essa indeterminação, procurou-se demonstrar ao longo do texto, é elemento essencial do avanço de um plano político-econômico mobilizado por um grupo específico de agentes.

Nessa direção, a pesquisa propôs e operacionalizou uma distinção analítica entre três dimensões da arena do agronegócio: (1) a noção de agribusiness/agronegócio em si, (2) as cadeias produtivas, unidades econômicas empíricas, e (3) a concertação política do agronegócio.

Enquanto a noção se refere à “[...] soma total de todas as operações envolvidas na produção e distribuição de alimentos e fibras” (DAVIS, 1955: 5), as cadeias produtivas definem-se pelas soldagens da agropecuária com segmentos de indústrias e serviços a montante e a jusante dela (KAGEYAMA et al., 1990).

A concertação, distinta de ambas, consiste em uma composição intersetorial de caráter político entre representações da agricultura e de segmentos conectados a ela que, alicerçada na categoria agribusiness/agronegócio, atua de forma multilateral, coordenada, institucionalizada e sistemática. Sua finalidade principal é a ação voltada a convencer a opinião pública a valorizá-la e pressionar o Estado a inseri-la como elemento estratégico no planejamento governamental.

No ano de 2018, a concertação política do agronegócio abrange entidades patronais da agropecuária, das indústrias de máquinas e insumos agrícolas, e daquelas das principais commodities de exportação, além de atores dos três Poderes do Estado, da academia, do mercado financeiro, de empresas 309 de comunicação e consultoria. Essa conformação é dada pelo conjunto de seus três principais núcleos, o Instituto Pensar Agropecuária/Frente Parlamentar Mista da Agropecuária, o Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e a Associação Brasileira do Agronegócio.

Ao mesmo tempo, os déficits de representação da concertação em relação à totalidade dos atores envolvidos na noção de agronegócio precisam ser destacados: entidades relacionadas à agricultura familiar, como a Contag e a Contraf, não a integram; as indústrias de alimentos somente o fazem de maneira parcial; os segmentos de distribuição e as redes varejistas e atacadistas pouco se interessam em compô-la.

Os líderes da concertação atuam, a despeito desses déficits, como se representassem a todos os incluídos na noção abrangente de agronegócio. Com o conceito de sinédoque política, exploram-se contradições dessa atuação, como, por exemplo, em relação aos números anunciados em referência ao PIB e aos empregos.

Mobilizando a ideia de espírito do agronegócio, investigam-se os modos como estatísticas, ideias-força – como “produtividade”, “competitividade” e “sustentabilidade” – e imagens são mobilizadas para atribuir legitimidade aos agentes da concertação.

Esses são os pressupostos analíticos por meio dos quais se abordou a concertação política do agronegócio, que não foi apreendida como objeto previamente estabelecido ou estático, pois suas composições, reivindicações e estratégias foram mudando em relação às diferentes épocas. Por essa razão, adotou-se uma análise histórica focada no processo de formação do agronegócio como fenômeno político no Brasil.

A inspiração teórico-metodológica veio, principalmente, de elementos do modelo de descrição da formação de coletivos de representação da Antropologia do Político (ARRUTI, 2006; MONTERO, ARRUTI & POMPA, 2012; MONTERO, 2012), da análise da eficácia de mobilizações políticas na esfera pública da Teoria Crítica (FRASER, 1997, 2014) e da teoria da justificação da Sociologia Pragmática (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2005; BOLTANSKI & THÉVENOT, 2006).

Destaca-se, dentre as várias contribuições desses autores para a pesquisa, que a Antropologia do Político se mostrou fundamental para a adequada compreensão do papel que a noção de agribusiness e as práticas e narrativas a ela vinculadas tiveram no processo constituição e legitimação da concertação; que a Teoria Crítica contribuiu para a adoção de uma concepção crítica de esfera pública e para o melhor entendimento das estratégias da composição intersetorial do agronegócio de convencimento da opinião pública e de influência sobre o Estado; e que a Sociologia Pragmática auxiliou na análise dos modos como a concertação construiu um aparato de justificação com alta capacidade de convencimento.

Dado que o agronegócio como dimensão política está muito frequentemente relacionado aos grupos populacionais que a Antropologia estuda, como povos indígenas, comunidades quilombolas e pequenos agricultores, dentre vários outros, espera-se que esta investigação possa contribuir com a disciplina na compreensão desse fenômeno.

A pesquisa mostra que a invenção da noção de agribusiness nos Estados Unidos dos anos 1950 ocorreu em ambiente de convergência entre interesses acadêmicos e das indústrias da alimentação. Mesmo tendo obtido reconhecimento na esfera pública nos anos após sua criação, foi a adoção do neologismo pelo governo norte-americano, em articulação com corporações, que possibilitou sua popularização naquele país entre o final da década de 1960 e o começo da seguinte.

Ao ganhar notoriedade, a categoria foi, ademais, sendo paulatinamente mobilizada criticamente por setores que atuavam em torno de temas como direitos dos consumidores, meio ambiente, family farmers, pesquisa pública e política exterior. Na Harvard Business School, onde fora criada, a concepção continuou, no entanto, sendo operada de modo positivado em cursos para empresários e alunos regulares da instituição.

No Brasil, as entidades patronais de representação da agricultura foram as primeiras a notar o termo, ainda nos anos 1950 e 1960. Na década seguinte a esta última, a mobilização da noção obteve um pouco mais de vigor, pelas mãos de jornalistas, servidores de alta hierarquia do governo federal e intelectuais, cada um desses grupos atribuindo significados distintos a ela.

Esse aumento dos agenciamentos no Brasil estava relacionado a três correntes existentes nos EUA que incentivavam o uso da ideia de agribusiness: a política exterior alimentar norte-americana, setores críticos que passavam a tomar o termo como descritor de grandes corporações e sua operacionalização em algumas universidades influentes.

Por outro lado, a intensificação das mobilizações da noção na década de 1970 estava conectada às políticas para a agricultura e segmentos a montante e a jusante dela que começavam a ser implementadas no Brasil, em processo que provocou a industrialização da agricultura, fase mais avançada de seu processo de modernização. Foi para entender os efeitos desse processo no país que a noção de agribusiness foi traduzida e inflexionada teoricamente como Complexo Agroindustrial.

Com a crise, nos anos 1980, do modelo de crédito rural farto e subsidiado colocado em operação durante a ditadura militar, o contexto econômico e político para a agropecuária, e, por extensão, às indústrias de máquinas e insumos agrícolas, passou a ser mais desafiador.

Nesse ambiente, o resgate da noção de agribusiness por uma empresa de genética animal e vegetal, a Agroceres, demonstrou ser estratégico para o desenho de um projeto político-econômico. A categoria tanto (1) proporcionava cálculos macroeconômicos que rompiam com a visão que condenava a agricultura a ter peso político diminuto – conforme sua participação econômica em relação aos outros setores –, possibilitando, por desdobramento, melhores condições de atuar na esfera pública e de influenciar o Estado, quanto (2) consistia em uma ferramenta para qualificar a coordenação no âmbito dos agentes privados situados ao longo das cadeias produtivas.

O aumento da proeminência do termo na esfera pública logo após seu anúncio como projeto político evidenciou que tinha havido adesões importantes no empresariado, na imprensa e na academia. A influência sobre o governo, contudo, não ocorreria rapidamente. Foi nesse contexto que a ideia de criação da Associação Brasileira de Agribusiness recebeu o incentivo final.

O projeto da Agroceres foi institucionalizado no ambiente legado pelo processo da Assembleia Constituinte, no qual tinha surgido uma frente informal para representar os interesses patronais de setores técnica e administrativamente mais modernizados da agricultura, a Frente Ampla da Agropecuária Brasileira. Essa frente havia dado os primeiros incentivos à aproximação, em nível nacional, de entidades da agropecuária com representações de segmentos a montante e a jusante dela. Com o fim da Constituinte, ela perderia coesão, intensidade e direção política.

Dessa forma, a Abag nasceu em 1993 do encontro de um projeto de agribusiness buscando mais adesões e de uma frente política sem maior fundamento para continuar operando. Com Ney Bittencourt de Araújo, presidente da Agroceres à frente, a entidade surgiu como uma orquestração de cooperativas agrícolas com indústrias a montante e a jusante, além da presença de representantes do mercado financeiro, das universidades e da imprensa. Tratava-se da primeira representação da concertação política do agronegócio.

Suas reivindicações, expressas a partir de 1994 em documentos aos candidatos à presidência, tinham como foco um amplo leque de temas, como política agrícola, aqueles relacionados a interesses de segmentos a montante e a jusante, e outros de âmbito social. Além disso, a Abag procurou articular outros dispositivos para aprofundar o projeto de agribusiness, participando decisivamente da montagem de uma grande feira dinâmica, a Agrishow, e da retomada uma publicação, a Agroanalysis, a partir de então sob seu direcionamento editorial.

O governo federal, entretanto, somente começou a alterar seu posicionamento em relação aos pleitos da concertação a partir da segunda metade da década de 1990 quando, no contexto do Plano Real, sobressaíam-se as contribuições da agricultura para a balança comercial brasileira.

Nesse contexto, foi criado o Fórum Nacional da Agricultura (FNA), que representou uma primeira inserção mais relevante da concertação do agribusiness no âmbito do governo. Com a Abag fragilizada pela morte de Bittencourt de Araújo, o FNA passou a ter ascendência sobre o bloco intersetorial, com a liderança de Roberto Rodrigues, agente central da FAAB que havia atuado juntamente ao então presidente da Agroceres nos trabalhos para a criação da Abag.

Em comparação com aquela da Abag, a composição do FNA era mais concentrada na agropecuária, sendo que suas propostas se diferenciavam sensivelmente em relação àquelas da entidade de agribusiness criada em 1993, principalmente no que diz respeito aos temas sociais, nos quais mostrava um posicionamento politicamente mais conservador.

A influência da concertação e o ganho de popularidade da noção que ela mobilizava encontrariam, a partir dos trabalhos do FNA, maior acolhimento em áreas do Estado, a exemplo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), onde o agenciamento da perspectiva de agronegócio contribuiu para um redirecionamento político das prioridades de pesquisa da instituição. Ao mesmo tempo, essa legitimação estatal influenciou a proeminência da categoria em dimensões como a academia e a imprensa.

O governo Fernando Henrique Cardoso, entretanto, mostrou posicionamento reticente em relação às propostas da concertação consubstanciadas no FNA, atendendo-as apenas parcialmente. A alta dos preços de commodities agrícolas no começo da década de 2000, influenciando o aumento da produção e exportação delas pelo Brasil, com destaque para a soja e o milho, mudou, definitivamente, a relação dos líderes políticos do agronegócio com o Estado nacional.

A partir dessa época, a concertação passou a obter maior reconhecimento do governo, ampliando, consequentemente, a eficácia de suas reivindicações políticas. Foi nesse período que a Abag reassumiu a centralidade no âmbito da concertação. Com Roberto Rodrigues à frente, e agregando, com destaque, a maioria das indústrias multinacionais a montante da agropecuária, e tradings e usinas verticalizadas a jusante dela, a entidade passou a promover, então de modo mais exitoso que anteriormente, o espírito do agronegócio. Em 2002, a Abag criou um plano estratégico para o agronegócio no Brasil.

Após Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições presidenciais de 2002, ele convidou Roberto Rodrigues a assumir o Ministério da Agricultura (MAPA), oferecendo a oportunidade para que o plano da Abag fosse materializado.

Agindo em acordo com a bancada ruralista, o ministro Rodrigues conseguiu efetivar algumas das propostas da concertação, como a criação de títulos de crédito do agronegócio, o desenvolvimento de uma área estratégica no MAPA e a aprovação da Lei de Biossegurança. Desgastes políticos com setores do governo, entretanto, findaram em sua saída do governo em 2006.

Nesse mesmo ano, a Fiesp estava criando uma área específica para tratar de agronegócio. Roberto Rodrigues assumiu, assim, o Conselho Superior do Agronegócio (Cosag) da entidade. Com a ampla influência desse líder e o poder da Fiesp, o Cosag passou a atuar, a partir de 2007, como o principal núcleo político da concertação. Essa mudança colocava a composição intersetorial em maior contato com as indústrias da alimentação.

Conforme aumentava o poder dos agentes políticos do agronegócio ao longo dos anos 2000, eles e a noção na qual se fundamentavam passaram a ser crescentemente criticados na esfera pública, sendo envolvidos em uma série de controvérsias.

Essas controvérsias estavam relacionadas a distintas lógicas de justificação. Em um primeiro grupo, havia as questões agrária e agrícola, ancoradas no fundamento de justiça social. Em um segundo grupo, mais heterogêneo, estavam as controvérsias afetas ao meio ambiente, aos direitos indígenas e ao trabalho escravo, que, embora amparadas em fundamentos diversos entre si (ambientalismo, direitos indígenas e garantias fundamentais, respectivamente), estavam conectadas tanto a públicos mais amplos no país do que aqueles que se mobilizavam pela justiça social quanto mais bem inseridas em escalas internacionais da esfera pública.

No âmbito da controvérsia agrária, mostrou-se que o afastamento do Movimento dos Sem Terra em relação ao governo e a diminuição da intensidade da política nacional de reforma agrária na segunda metade da década de 2000 tiveram, como um dos elementos mais relevantes, a atuação da concertação do agronegócio.

Em relação à controvérsia agrícola, destacou-se o embate entre propostas classificatórias relacionando “agricultura familiar” e “agronegócio”. Houve agentes políticos que defenderam que seria possível conciliar os dois; outros que afirmaram que eles constituiriam polos de uma disputa; e aqueles que contestaram a oposição entre eles, argumentando que uma estaria inserida no outro. Foram vários os desdobramentos práticos dessa disputa, a exemplo da tentativa (derrotada) de democratização da pesquisa agropecuária na Embrapa. Nesse episódio, dentre outros, houve a mobilização de manipulações classificatórias por parte de agentes da concertação, que, de acordo com os contextos políticos, ora incluíam a “agricultura familiar” no “agronegócio”, ora a distinguiam como categoria.

Essas duas controvérsias, agrária e agrícola, tiveram resultados, ainda que parciais (pois essas controvérsias não haviam chegado a seu fim), favoráveis à concertação. As outras, ambiental, indígena e do trabalho escravo, no entanto, apresentaram mais dificuldades para os líderes políticos do agronegócio. Como afirmado acima, ambas eram operadas mais intensamente em escala internacional, além de terem maior número de adeptos no país do que as controvérsias agrária e agrícola. Esses fatores contribuíram, de modo decisivo, para forçar a concertação a adotar atitude por vezes defensiva, inclusive por conta do aumento das ações de fiscalização ambientais e de trabalho (que, por sua vez, ganhavam legitimidade e melhores condições políticas para serem executadas com as críticas ao “agronegócio”). Essa mudança, por sua vez, implicou rearticulações da narrativa da concertação e reordenações de seus posicionamentos.

Nesse contexto, a Fiesp e a Abag, dois núcleos fundamentais da concertação do agronegócio, estreitaram relações para responder às controvérsias públicas e aos conflitos com o governo. Conjuntamente, elas desenharam três estratégias. A primeira estava relacionada a mudanças nos marcos legais das controvérsias, sendo o principal alvo o Código Florestal; a segunda, calcada nas propostas de mudanças administrativas no governo federal, como a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; a terceira, focada na renovação da imagem do agronegócio na esfera pública.

O Código Florestal representou o primeiro grande campo de disputas derivado desse estratagema. Ao elegerem a alteração do referido código como prioritária, as empresas e entidades da concertação começaram a avançar na institucionalização e atribuição de sistematicidade à sua relação com a bancada ruralista, ao mesmo tempo em que suas pautas se tornavam crescentemente focadas em disputas fundiárias.

Após a vitória advinda do enfraquecimento do marco legal de proteção ambiental, a concertação política do agronegócio escolheu novo alvo central: os direitos territoriais indígenas. O governo de Dilma Rousseff tornara-se, nesse momento, bastante aderido aos anseios da concertação, embora não de forma completa.

Precisamente quando a crise política e econômica durante a gestão de Dilma Rousseff foi ganhando proporções maiores, o que ocorreu entre 2015 e 2016, a concertação foi associando-se, cada vez mais, ao vice Michel Temer e voltando-se contra a presidente, até ocorrer seu impedimento em agosto de 2016, para o qual teve contribuição decisiva.

A última parte da tese trata da organização atual da concertação política do agronegócio, analisando seus agentes e seus dispositivos de poder.

As nucleações políticas atuais da concertação estão na bancada ruralista – e, mais precisamente, no Instituto Pensar Agropecuária, intersecção de entidades patronais da agropecuária e de indústrias relacionadas ao agronegócio com aquela frente parlamentar –, na Fiesp, que, ao mesmo tempo, mantém grande importância estratégica, e na Abag, que perdeu um pouco de influência, apesar de liderar instâncias de prestígio na concertação, como o congresso que realiza anualmente.

No que diz respeito aos dispositivos da concertação, citam-se os de congregação de atores (congressos e eventos), de conhecimento (universidades e centros técnicos), de legitimação (números, ideias-força e imagens), de comunicação (aderência de grande parte da imprensa, campanhas publicitárias e meios internos) e tecnológicos (feiras dinâmicas). As investigações a desdobrarem-se da compreensão do agronegócio como fenômeno político podem, segundo se entende, abordar outras dimensões de suas controvérsias, trazer novos elementos sobre as relações dele com o ruralismo e realizar mais análises sobre suas estatísticas.


NOTAS

[1] Esta é a conclusão da tese de doutorado em antropologia de Caio Ribeiro Neto, intitulada Formação política do agronegócio. Você pode acessá-la neste link


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